O excelente blog A Nova Retaliação (do original: The New Backlash) é uma série de 16 textos que aborda de forma bem didática questões sobre sexo, gênero, feminismo, pessoas transgênero e pessoas transexuais.
Esta é a tradução do segundo texto da série (do original: 2. Sex vs. gender); aos poucos vou postar as traduções dos textos restantes.
Tradução do texto anterior: A Nova Retaliação – 1. Introdução
Notas de tradução estarão entre chaves {}. Todo o resto, incluindo links (para outros textos em inglês), negrito e itálico, segue a formatação do texto original.
A Nova Retaliação
2. Sexo X gênero
Sexo = classe biológica baseada em potencial reprodutivo
“Classe” significa que nós descrevemos um grande grupo de pessoas (neste caso, bilhões) a quem certas características biológicas se aplicam. Humanos são fêmea, macho, e uma pequena porcentagem de intersexo. Fêmeas humanas produzem óvulos. Machos humanos produzem espermatozoides. Uma pequena porcentagem tanto de machos quanto de fêmeas é infértil; no entanto, é por meio da fertilização do óvulo pelo espermatozoide que todos os embriões humanos vêm a existir. Consideração que a continuação de uma espécie é importante pra essa espécie, a reprodução sexuada é importante pra humanidade. Considerando que fêmeas humanas gestam fetos dentro de seus próprios corpos, a reprodução sexuada é muito importante para as mulheres.
Estas definições não são fóbicas ou expressam ódio contra ninguém:
mulher: fêmea humana adulta
homem: macho humano adulto
fêmea: referente ao sexo que tem a capacidade de gestar filhotes ou botar ovos, diferenciado biologicamente pela produção de gametas (óvulos) que podem ser fertilizados por gametas masculinos
macho: referente ao sexo que produz gametas, especialmente espermatozoides, com os quais uma fêmea pode ser fertilizada ou inseminada para produzir filhotes
Mais detalhes sobre a diferença entre machos e fêmeas em humanos:
{Clique aqui para acessar a tabela acima em arquivo de texto}
Gênero: uma hierarquia opressiva, socialmente construída.
Produtor de espermatozoides = macho. Produtora de óvulos = fêmea. Isso é uma simples classificação biológica.
Macho = masculino/dominante. Fêmea = feminina/submissa. Isso é gênero, como a palavra é usada por pensadoras feministas.
Baseado na noção (sexista) de que o sexo determina a personalidade e que portanto deve determinar o papel social e o status, gênero é a ferramenta social pra naturalizar que as mulheres sejam dependentes dos homens, e assim garantir que homens tenham acesso ao trabalho emocional, sexual, doméstico e reprodutivo realizado pelas mulheres. É sobre poder, não sobre expressão individual. Opressão está sempre vinculada a extração de recursos.
A diferenciação entre masculino e feminino é indicada por nomes, pronomes, cores, brinquedos, roupas, estilos de cabelo, etc (de acordo com costumes da época e do local), mas, o mais importante, gênero é o encorajamento ou a punição, de forma sistemática, de certas características da personalidade humana, com base no sexo.
{Clique aqui para acessar a tabela acima em arquivo de texto}
Por sinal, os hormônios femininos (supostamente) tornam as mulheres “muito emocionais”, portanto as nossas análises de gênero jamais poderiam ser úteis. (Sim, isso é sarcasmo. Leia sobre a Síndrome do Macho Irritado.)
Os hormônios masculinos (supostamente) tornam os homens “naturalmente agressivos”, o que é usado pra justificar a dominação social deles, mas a testosterona também é usada pra enquadrar a violência masculina não somente como perdoável mas também como inevitável. [Uma cultura de supremacia branca, no entanto, vai tratar qualquer violência cometida por homens de cor – negros/latinos/do oriente médio/etc – como imperdoável, por ser considerada uma ameaça à dominação por cor de pele.]
É claro que o papel da testosterona no comportamento é muito mais complicado do que uma mera relação de causa e efeito, e é mediado por estruturas sociais. Além disso, (surpreendentemente!) nós ainda nunca ouvimos ninguém em uma posição de poder proeminente sugerir a castração em massa como a cura pro que provavelmente é o nosso pior problema social, que é a violência masculina.
Voltando ao assunto. Porque as mulheres (supostamente) são fracas, excessivamente emocionais, submissas, incapazes de entender ou construir coisas, nós (supostamente) precisamos encontrar homens pra 1) nos defender (dos outros homens, que são naturalmente agressivos – que medida de proteção conveniente) e 2) prover as nossas necessidades materiais.
Claramente, nós mulheres somos capazes de tomar conta de nós mesmas. Mulheres das classes econômicas mais baixas sempre trabalharam, inclusive em trabalhos fisicamente exigentes. E não há nada na nossa “natureza” que impeça nós mulheres de nos organizar e/ou treinar o uso de armas que compensam a diferença de tamanho (sem contar o simples soco na virilha). É por isso que nós precisamos ser socializadas para a submissão e a dependência desde o nascimento.
Porque nós (supostamente) precisamos encontrar homens pra nos defender e sustentar, nós precisamos nos divulgar para a atenção masculina, e então criar um vínculo por meio de serviços emocionais, domésticos e sexuais, e não quebrar esse vínculo sendo arrogantes.
Porque nós (supostamente) precisamos sempre manter o nosso valor para os homens pra ficar em segurança, nós precisamos sempre enxergar nós mesmas pelo “olhar masculino” ao invés do nosso próprio olhar. E porque nós precisamos continuar atraentes pros homens e porque os homens (supostamente) são naturalmente agressivos, nós podemos muito bem ser estupradas e o mundo é assim mesmo.
Porque as fêmeas já fazem o trabalho de gestar um feto, parir um bebê, e amamentar uma criança pequena, nós (supostamente) também precisamos ser responsáveis por todo o resto do trabalho de criar filhos. (Alguém poderia pensar que dividir o trabalho faz mais sentido e é mais justo.)
E claramente, diante do enorme poder de fazer crescer um outro ser humano dentro de nós, supostamente nós também somos obrigadas a engolir a ridícula ideia de inveja do pênis, talvez a inversão mais descarada em todo o patriarcado.
Mas porque nós fêmeas (supostamente) somos *naturalmente * empáticas e dedicadas aos outros, esperam que a gente engula tudo isso e simplesmente resgate todo mundo com o nosso amooooooor. Porque nós nascemos pra isso.
[Nós não nascemos pra isso – nós fomos treinadas pra isso – se você ainda não leu, por favor leia Aprendendo a Sobreviver: Terror Sexual, a Violência dos Homens e as Vidas das Mulheres]
Somente invisibilizando o trabalho emocional, sexual, doméstico e reprodutivo realizado pelas mulheres para os homens – considerando que esse trabalho seja “da nossa natureza” – é que os homens conseguem manter a sua autoimagem ilusória como “independentes”. Na realidade nós temos um mundo em que as mulheres são mantidas como dependentes dos homens e portanto devem servi-los; mas nos vendem a história de que as mulheres são flores delicadas que os homens são gentis o suficiente pra sustentar, uma mentira que é vendida pra garotinhas nas histórias de princesas, exibidas tão intensamente no corredor rosa de brinquedos, logo ao lado de todas as versões miniaturizadas e plastificadas dos utensílios domésticos, uma sobreposição nada irônica da realeza mimada (como nós vamos descrever você) e da classe servil (como você realmente vai viver).
Esse tipo de inversão descarada é uma ferramenta comum do patriarcado da supremacia branca, e também pode ser vista quando mulheres de cor – negras/latinas/etc – , que, seja por não encontrarem trabalho ou por trabalharem longas jornadas com salários baixos, vivem na pobreza mas são descritas como “rainhas dos auxílios do governo”.)
Se não ficou claro a partir do texto acima, gênero não é um binário de iguais, é uma hierarquia. Por milênios as mulheres foram propriedade legal dos homens. Globalmente, as mulheres ainda são submetidos a mutilação genital feminina, casamento infantil, queima de noivas e tráfico sexual. As mulheres mais sortudas são meramente submetidas a uma vida inteira de discriminação na família, escola e trabalho; atendimento de saúde sexista; assédio constante na rua; misoginia online; lembretes diários de que os homens são pessoas e as mulheres são o resto; diferença salarial persistente; ataques legislativos à autonomia corporal; intimidação e violência física – tudo isso tende a piorar dependendo da raça/etnia e da classe econômica – e tudo isso tem o objetivo de nos manter no nosso (suposto) lugar.
Próximo texto: Imaginando um mundo sem gênero {tradução disponível em breve AQUI!}.